Onde estão os limites entre a proteção dos outros utentes, e dos próprios profissionais de saúde, e os direitos aos acompanhantes das grávidas? Como resolver esta colisão de direitos humanos?

Do Observador

 

“Dr.ª e o meu acompanhante, quando é que pode entrar?” — é, invariavelmente, a questão que mais me colocam.

A grávida que internava em trabalho de parto naquele dia não foi exceção. A resposta negativa, por mais que esperada, não a satisfez.

À medida que a Covid-19 se alastrou pelo mundo, os sistemas de saúde dirigiram todas as suas energias para combater esta ameaça. Durante as últimas semanas, reorganizaram-se rotinas e funções, inovaram-se sistemas, inventaram-se novas palavras, definições e abordagens.

Ainda que esta reorganização tenha sido fundamental, as outras necessidades médicas continuaram a existir tal como antes, e não nos deram tréguas.  Quem está no terreno sentiu que, principalmente nas primeiras semanas, o medo dos doentes em ir ao hospital, mesmo em casos urgentes, ou simplesmente o cancelamento de consultas e cirurgias de rotina, levou a atrasos em diagnósticos (por exemplo, de AVCs), e terapêuticas (por exemplo, tratamentos oncológicos e transplantes de órgãos) com consequências ainda por apurar. Mais ainda, na urgência de tomar medidas de segurança, os hospitais restringiram o número de pessoas que podiam entrar nas suas instalações, proibindo o acesso a todos os acompanhantes e visitantes.

Ir e estar no hospital tornou-se ainda mais difícil e solitário. Os doentes querem, precisam e esperam que os seus familiares os possam acompanhar. Mas este vírus deixou os Portugueses a nascer sozinhos, a sofrer sozinhos, a morrer sozinhos. Sozinhos, ou pelo menos, e porque é preciso valorizar todo o esforço e empenho dos profissionais de saúde neste acompanhamento, sem os seus entes-queridos. A simples ideia de que tal possa, algum dia, vir a acontecer comigo arrepia-me.

As mulheres grávidas também foram colocadas numa situação difícil. Apesar da evidência científica relativamente ao impacto do coronavírus na gravidez ser otimista, há muitas incertezas, e muitas mulheres temeram por elas e pelos seus bebés.

Não se conhecem dados concretos, mas é possível que esta insegurança tenha posto muitas mulheres em risco ao evitarem ir ao hospital ou as tenham levado a tomar outras alternativas, como a de ter o parto em casa. O UN Population Fund estima que durante o surto de ébola, entre 2014-2015, na Libéria, Guiné e Serra Leoa tenham morrido 120.000 mulheres por falta de cuidados maternos, 10 vezes mais do que as mortes por ébola.

A proibição dos acompanhantes nas salas de parto e puerpério veio exacerbar a ansiedade (e a discussão). Na semana passada, a Provedora da Justiça Maria Lúcia Amaral publicou, na página oficial da Provedoria da Justiça, que recebeu dezenas de queixas relativas à proibição de acompanhante durante o trabalho de parto. As mulheres clamam estar a perder a sua autonomia.

A questão dos acompanhantes nas salas de partos tem sido muito falada, e não só no contexto da pandemia. Muito se insistiu para que os pais pudessem assistir às cesarianas – e em grande parte do país já o podem fazer – e não faltam associações de defesa das grávidas a debaterem a permanência integral e sem condicionantes dos acompanhantes (está previsto legalmente que o médico possa dar indicação para o acompanhante se retirar em momentos específicos).

Mas nem sempre foi assim. Tradicionalmente, o parto era um momento feminino. A grávida convocava amigas e familiares que, juntamente com uma parteira, realizavam o parto em casa. O pai ficava à espera fora do quarto e, em caso de necessidade, era chamado um médico. Os partos hospitalares impuseram-se no início do século XX, e com a constante inovação, os companheiros começaram a querer fazer parte deste momento. A entrada dos pais nas salas de parto foi um processo progressivo ao longo dos anos 60, inicialmente apenas durante o trabalho de parto, e só pelos anos 70 e 80 passaram a assistir ao parto também. Em Portugal, só em julho de 1985 foi conferido legalmente o direito a acompanhante à grávida em trabalho de parto (Lei nº 14/85, de 6 de julho).

Reconhecendo as vantagens cientificamente corroboradas do acompanhamento no parto, mas tendo em conta igualmente o enraizamento contemporâneo deste tópico, que por vezes me faz questionar até que ponto se sente “reprovado” quem opta por não querer ter/querer ser acompanhante, volto ao cerne da questão: por todo o país temos grávidas privadas de acompanhante e progenitores impedidos de assistir ao nascimento dos filhos. Neste momento de reinvenção do Serviço Nacional de Saúde após o primeiro surto do coronavírus, sabendo todos os cuidados necessários para evitar o próximo, surgem-me algumas reflexões sobre este tema:

Não há consensos mundiais. A mesma discussão repete-se, traduzida em várias línguas. Os médicos diretamente envolvidos na luta contra o novo coronavírus estão convictos de que a restrição de pessoas dentro e à volta do hospital é uma estratégia clínica e epidemiológica que ajuda a proteger doentes vulneráveis e profissionais de saúde.

Claro está que as restrições que impusemos resultaram numa perda da liberdade individual, limitaram o apoio que muitos precisaram num momento especialmente difícil e aumentaram a ansiedade. Mas quando estamos a falar de ameaças a este nível, é ético aceitar que a proteção da saúde pública supera os direitos individuais. É ético – e está ademais previsto na lei — que existam situações excecionais, como esta pandemia, que exijam medidas e restrições excecionais.

O importante é assegurar que todos aqueles que vêem os seus direitos individuais restringidos sejam geridos de forma ética e imparcial, para que não sejam prejudicados injustamente ou desproporcionalmente por tais medidas. Em específico, as situações extremas de início e fim de vida devem ser priorizadas. Relativamente à obstetrícia, acredito que está na hora de aceitar as nossas restrições de segurança, mas desenvolver as medidas e protocolos que permitam não um regressar à normalidade, mas a alguma normalidade na sala de partos e puerpério. Devemos aos nossos utentes a garantia de que estamos a fazer o melhor possível para minimizar as suas restrições.  Por outro lado, as nossas grávidas e seus familiares devem compreender e aceitar as limitações que são impostas.

Há algumas semanas que, no hospital onde trabalho, são já permitidos acompanhantes na sala de partos em situações que cumpram requisitos exigentes e com todas as medidas de segurança cumpridas, o que acredito ter ajudado a minimizar a ansiedade e melhorar a experiência de muitos casais. No entanto, esta política não está em vigor em todos os hospitais da cidade, tampouco do país, criando assimetrias intoleráveis. Esta disparidade não se manifesta apenas entre a dicotomia público e privado (onde, de certa forma, o poder económico de alguns casais permitiu restrições mais leves), mas dentro do próprio sistema público. Cabe agora às entidades competentes estender este debate a nível nacional, de forma a garantir a equidade nos cuidados prestados.

Naquele dia, e como sempre, médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica e de diagnóstico trabalharam em conjunto. Demorou um pouco, mas finalmente veio a notícia: “Senhora M., o seu teste do coronavírus está pronto. É negativo, assim como o do seu acompanhante. Ele vai já entrar.” O sorriso que recebemos por detrás da máscara, irradia-lhe pelos olhos e aquece-nos o coração. Por tudo isto já vale a pena a discussão e a nossa tentativa de encontrar a solução que melhor equilibre a segurança e a ética. Todos queremos o mesmo: que fique tudo bem.

Catarina Reis de Carvalho tem 30 anos e é médica interna de Ginecologia-Obstetrícia no Hospital de Santa Maria – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Paralelamente, é assistente convidada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Pertence ainda à Ordem dos Médicos e ao Conselho Nacional de Médicos Internos. Juntou-se aos Global Shapers Lisbon em 2017.