Aos poucos, as cidades brasileiras estão retomando comércios e serviços considerados não essenciais. Conversamos com mães que precisaram voltar aos seus empregos mas não têm com quem deixar os filhos, confinados em casa por conta do fechamento das escolas e creches, e com especialistas que apontam os ônus que carregam por serem mulheres em uma crise pandêmica
Com o “coração aflito”, Candida* pagará uma vizinha para cuidar do seu bebê de 2 meses. A partir do dia 25 de junho, em plena pandemia de Covid-19 e em meio à gradual reabertura econômica das cidades, volta a trabalhar como secretária de um consultório médico em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Na cidade, as clínicas estão autorizadas a retomar suas atividades desde o início de abril. Já os serviços não essenciais, foram reabertos em maio, com restrições de fluxo e horário de funcionamento.
Candida, de 30 anos, não tem um familiar que possa ajudá-la. A mãe morreu e a irmã tem o próprio filho pequeno para cuidar. O pai do bebê foi embora de casa quando ela estava grávida de 19 semanas. “Ele dá R$ 400 por mês e nem pergunta nada sobre o filho”, conta.
Enquanto ficou em casa na pandemia, respondeu a algumas mensagens de pacientes por WhatsApp e realizou um procedimento de cobrança de convênio médico. Com medo de ser demitida no meio da crise com um filho de colo, entrou em um acordo com os patrões para que voltasse antes da licença maternidade terminar. Dessa forma, passa a receber o salário e o auxílio do INSS. “Assim consigo juntar um dinheiro caso passe por alguma emergência com meu bebê”, diz.
Arranjarem tempo para responder a uma entrevista sem interrupções não foi fácil. Em meio à volta à rotina de trabalho fora e com filhos ainda em casa, Marie Claire conversou com algumas mães. Muitas não têm onde deixar as crianças enquanto trabalham, já que as escolas e creches estão fechadas, e precisam conciliar o emprego com os cuidados do lar e da família, além de acompanhar aulas online e ajudar nas tarefas escolares dos pequenos.
O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) lançou em junho diretrizes nacionais em termos sanitários e pedagógicos para um eventual retorno às aulas presenciais, mas ainda não definiu datas para que isso de fato aconteça.
Claudia* também é mãe solo e voltou a trabalhar no dia 25 de maio, em uma loja de utensílios de cozinha em um shopping center de Curitiba, Paraná. Os shoppings da capital foram reabertos no dia 25 de maio, com horários de funcionamento reduzidos. O comércio de rua funciona também com restrições desde 15 de abril.
O atual expediente de Claudia é de 8 horas, dia sim, dia não, com uma folga na semana. O que significa 50% do tempo que trabalhava antes da pandemia. Fica dessa forma por causa da redução de salário e jornada aplicada por meio da MP936. No começo da quarentena, ela ficou em casa, sem trabalhar, e sofreu uma redução salarial de 70% – o restante do pagamento foi compensado pelo recebimento do auxílio do governo. Pouco antes da reabertura, passou a ir ao shopping uma vez por semana para entregar aos consumidores compras feitas online, ganhando metade do salário original – também compensado pelo auxílio do governo.
Quando Claudia está no emprego, o filho de 7 anos fica com os avós. O pai do menino presta serviço em uma distribuidora de combustíveis, e nunca deixou de ir ao trabalho por causa da pandemia. “É preocupante deixar meu filho com meus pais pois são grupo de risco, um devido à idade e outro por estar passando por um tratamento oncológico. Me sinto naquela situação: se correr o bicho pega e se ficar o bicho come. Trabalhar para mim hoje, na crise, é uma escolha diária. Todo dia tenho que pensar se vale a pena colocar em risco a saúde dos meus pais. Tenho medo de estar errando, sendo imprudente, mas me vejo sem saída. Trabalhar também faz parte da minha identidade. Nunca quis ser dona de casa. E por causa das despesas com o tratamento da minha mãe, não posso ficar desempregada”, diz a vendedora.
Segundo Denise Pimenta, doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), o poder público não pensou nas mulheres quando determinou a quarentena e tampouco as considera em momento de reabertura. “Muitas já perderam seus trabalhos, estão vivendo de bico, de aplicativos. Homens acadêmicos começaram a publicar muito mais num país onde mulheres normalmente publicam mais que homens. Em todas as áreas da ciência as publicações femininas caíram no mínimo 50%. Os homens em casa começaram a escrever mais. As mulheres, não, fazem serviço doméstico, cuidam dos filhos. E isso vale para todas as áreas. Mesmo o auxílio emergencial não foi pensado para as mulheres na base da pirâmide social. Deveria haver, para além desse auxílio, uma renda dirigida especificamente a mulheres periféricas, que poderia ser distribuída pelas próprias lideranças comunitárias para que chegue a elas de forma mais rápida e menos burocrática. São elas que administram os cuidados, doações, alimentação, material de higiene.”
Geridiana Fredo voltou a trabalhar nesta semana como supervisora da loja Tok Stok no Shopping Iguatemi, em São Paulo, aberto desde 13 de junho com horário reduzido, assim como o comércio de rua, que voltou a funcionar um dia antes.
A família toda de Geridiana é de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, então só resta o marido para ficar com os filhos quando ela está fora. “Ele é meu braço direito e me ajuda em tudo. Quando fui promovida a supervisora, meu horário ficou todo bagunçado. Neste momento, meu marido virou autônomo para conseguir conciliar nossos tempos. Ele começa a trabalhar quando eu chego, vende hambúrguer artesanal e é motorista de aplicativo”.
Quando está em casa, Geridiana faz questão de dedicar o máximo de atenção às crianças, mas também considera importante o tempo com o marido e com ela mesma, sozinha. “É puxado, vou dormir meia-noite para dar conta de tudo, mas faço com amor”, conta.
A vida de Márcia* está difícil agora, em esquema de home office com as duas filhas mais novas em casa, mas a possibilidade de voltar ao escritório a qualquer instante a deixa ainda mais angustiada. Secretária de três diretores de uma das maiores redes de varejo do país, vive em São Paulo sozinha com as meninas e não tem com quem deixá-las. O pai das crianças, de quem Marcia é separada, continua trabalhando fora e os avós são do grupo de risco.
“Tento viver um dia de cada vez, controlar minha ansiedade. Mas se tiver que voltar a trabalhar fora, simplesmente não sei o que fazer. Me cobro também, não quero deixar de contribuir com minha empresa. A gente precisa ter alguém do poder público que olhe e fale: ‘E a mãe solo’? Meu chefe me liga, pede urgência, e minha filha está pedindo ajuda na tarefa do colégio. Eu preciso saber qual é a minha prioridade. Nós mulheres já somos sobrecarregadas, com a pandemia você precisa dar conta de tudo em 24h. Vou dormir 1h da manhã para levantar às 6h. O homem não tem essa sobrecarga. Você conhece algum pai solo? Eu não. O pai acaba tendo ajuda da mãe, avó, tia”, diz Márcia.
“O trabalho do cuidado pela mulher é naturalizado e romantizado em nossa sociedade, mas ele é extremamente oneroso, pesado, um fardo que pode nos levar a doenças físicas e mentais. Esse é um trabalho cotidiano, que não tem feriado, férias, finais de semana, não é pago e não tem hora para acabar”
Denise Pimenta
A defesa de Denise Pimenta é que epidemias, pandemias e tragédias naturais afetam muito mais o gênero feminino que o masculino. “Não quero dizer que mais mulheres morrerão por conta da Covid-19 ou até mesmo que mais mulheres podem adquiri-la, mas que mulheres são mais afetadas nessas situações por conta do trabalho do cuidado. Quando chegam momentos graves como o que estamos vivendo, o trabalho da mulher dobra ou triplica. É o trabalho da rua, muitas vezes como enfermeira, auxiliar de enfermagem, técnica, faxineira, gari, e o trabalho de dentro de casa: gerir os mantimentos, a higiene dos outros, a agenda dos outros, a limpeza e a organização do lugar. Ela vai ser responsável por gerir o cotidiano do controle da doença, mesmo quando ela não é da área da saúde. O trabalho do cuidado pela mulher é naturalizado e romantizado em nossa sociedade, mas ele é extremamente oneroso, pesado, um fardo que pode nos levar a doenças físicas e mentais. Esse é um trabalho cotidiano, que não tem feriado, férias, finais de semana, não é pago e não tem hora para acabar”.
De acordo com o levantamento Outras formas de trabalho, realizado anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e divulgado neste mês de junho, em 2019, as mulheres dedicaram quase o dobro de horas semanais (21,4) aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas, especialmente crianças, em relação aos homens (11 horas semanais). A pesquisa ainda mostra que essa dedicação, que deveria ser chamada apenas de trabalho não remunerado, só vem aumentando mais a sobrecarga das mulheres. De 2016 para 2019, essa diferença entre as médias masculina e feminina aumentou de 9,9 para 10,4 horas semanais.
“Elas vão ter que pensar em soluções individuais, como sempre fizeram. Algumas vão deixar o filho em casa sozinho, com a avó, vizinha ou com a filha mais velha. E outras vão ficar na estrada, desempregadas””
Hildete Pereira de Melo
Para Hildete Pereira de Melo, professora da Faculdade de Economia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia, a falta de creches no Brasil sempre foi o grande drama das mães com filhos abaixo de 14 anos, a diferença que é agora o problema é escancarado pela crise da Covid-19. A economista não vê solução – que venham dos setores público ou privado – para as mulheres que voltam ao trabalho sem ter onde deixar as crianças. “Elas vão ter que pensar em soluções individuais, como sempre fizeram. Algumas vão deixar o filho em casa sozinho, com a avó, vizinha ou com a filha mais velha. E outras vão ficar na estrada, desempregadas. Podemos projetar o pior dos cenários das tragédias humanas para elas”, diz Hildete, que continua, “[quanto ao setor privado] não existe bondade, o que vale é lucro. Ninguém vai deixar mãe nenhuma ficar em casa porque é bonzinho. A pandemia não vai tornar o mundo melhor”.
*as identidades foram protegidas a pedido das entrevistadas