O número de mortes maternas por Covid-19 mais do que dobrou nas 13 primeiras semanas de 2021 em relação à média semanal do ano passado. Passou de 10,4 óbitos (449 mortes em 43 semanas de pandemia de 2020) para 22,2 nas primeiras semanas deste ano, com 289 mortes.
Embora estudos mostrem que a gestação e o pós-parto aumentam o risco de complicações e morte por Covid-19, no Brasil o alto número de óbitos maternos associados à doença é atribuído, principalmente, à falta de assistência adequada.
Desde o início da pandemia, uma em cada cinco gestantes e puérperas (22,6%) internadas com Covid não tiveram acesso à UTI e 33,3% não foram intubadas, último recurso terapêutico para os casos graves da Covid-19.
Os dados obtidos pela Folha vêm do OOBr Covid-19, um observatório obstétrico recém-lançado que agrupa informações de várias bases públicas, como os sistemas de nascidos vivos e de mortalidade materna, e o Sivep Gripe (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe). A atualização é semanal.
O painel é elaborado por pesquisadores da USP e da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e está dentro de um projeto maior que analisa dados materno-infantis no país e que conta com financiamento da Fundação Gates e de bolsas de pesquisa do CNPq e da Fapes (fundação de amparo à pesquisa do ES).
Segundo a última atualização, no dia 7 de abril, desde o início da pandemia foram 9.479 casos de internações por Covid entre gestantes e puérperas, com 738 mortes.
Existem outros 9.784 de registros de SRAG (síndrome respiratória aguda grave) não especificados nesse grupo, com 250 óbitos. Para os pesquisadores, é grande a possibilidade desses casos serem também Covid.
O que explica liderança do Brasil em ranking de mortes maternas?
Segundo a médica obstetra Rossana Pulcinelli Francisco, professora do departamento de ginecologia e obstetrícia da USP-SP e uma das criadoras do painel, os dados deixam evidentes as disparidades regionais envolvidas na falta de uma assistência materna adequada, cenário já apontado em outros estudos que colocaram o Brasil como líder mundial de mortes maternas por Covid.
No Pará, quase a metade (46%) das gestantes e puérperas mortas não puderam contar com terapia intensiva. Já no Rio Grande do Sul, 4% dos óbitos foram nessas circunstâncias.
No estado de São Paulo, 18% das gestantes e puérperas morreram fora da UTI e 38% não foram intubadas. Na capital paulista, 3% não chegaram à UTI e 24% não foram intubadas.
“Nos casos graves, uma boa assistência significa a mulher ter chegado à UTI. E como a maior complicação da Covid é a respiratória, ela precisa ter chance de ser intubada. Se ela morre antes disso, é porque não recebeu toda a assistência que deveria”, explica Rossana Francisco.
Segundo a médica, além da falta de leitos da UTI, o fato de as gestantes infectadas terem que percorrer longas distâncias para conseguir alguma assistência também pode contribuir para um pior desfecho.
De acordo com Lucas Lacerda, estudante de graduação de estatística da Ufes e que também integra o grupo que mantém o painel obstétrico, gestantes e puérperas com Covid residem em 2.520 municípios brasileiros e foram atendidas em 977 hospitais. Ainda estão sendo organizados os dados sobre o percentual de mulheres que se deslocaram para conseguir a internação.
A morte de uma menina de 13 anos, que estava com 31 semanas de gestação e que morreu em Medicilândia (PA) por complicações da Covid-19, exemplifica o gargalo.
Vítima de estupro, a criança vivia em Uruará (1.048 km de Belém) e foi atendida primeiro no hospital do município. Em seguida, foi levada para Medicilândia, a duas horas de carro.
Com quadro grave de Covid-19 e precisando de UTI, foi transferida para o Hospital Regional Público da Transamazônica, em Altamira. Mais uma hora e meia de estrada.
No meio do caminho, o quadro de saúde da menina piorou e a ambulância voltou para Medicilândia. Ela não resistiu e morreu na unidade.
Segundo Rossana Francisco, também é preciso analisar o tipo de UTI que tem atendido essas gestantes e puérperas com Covid-19. Além dos intensivistas, o serviço precisa ter médicos obstetras, neonatologistas e equipe multidisciplinar.
“Quando a gente tem uma gestante, os parâmetros de ventilação são diferentes, a quantidade de líquidos a ser ingerido [balanço hídrico] também tem que ser monitorada de uma outra forma”, explica.
A médica lembra que já existem evidências de que qualquer cirurgia feita em um paciente com Covid aumenta a mortalidade e, durante a pandemia, muitas gestações estão sendo interrompidas precocemente.
“A gente viu muitos serviços indicando o parto porque a paciente estava com Covid. Isso também piora a morbidade e mortalidade.”
As mortes maternas por Covid devem se somar às outras que acontecem anualmente por outras causas, como hipertensão e hemorragia. Em 2019, foram 1.575 óbitos durante a gestação ou no pós parto. Em 2018, foram 1.658 mortes.
Mas, para a médica Agatha Rodrigues, também responsável pelo observatório obstétrico e professora do departamento de estatística da Ufes, essa soma é até conservadora levando em conta que, durante a pandemia, muitas gestantes ficaram sem assistência adequada e isso pode estar se refletindo em mortes ainda não computadas.
A ideia do observatório, segundo ela, é justamente tentar mapear isso a partir de informações oficiais. “Sem dados, parece que não tem problema. Não conseguimos analisar o impacto da pandemia na saúde materno infantil e das políticas públicas.”
Rossana Francisco ressalta que o Brasil tem tido muitas dificuldades em reduzir as taxas de mortalidade materna, e uma das razões é fragilidade e as deficiências na atenção à saúde das mulheres durante o pré natal, parto e puerpério.
“A pandemia de Covid-19 deixou ainda mais claro essas deficiências, especialmente a desigualdade que temos entre os diferentes estados.”
Para ela, há uma necessidade urgente de reestruturação da rede de atenção materna, especialmente na identificação de hospitais que possam ser capacitados para atuar no cuidado dessas mulheres.
No campo da prevenção, a médica diz que é muito importante que a gestante possa ter o direito garantido ao isolamento social para se proteger da infecção.
Rede de médicas pede urgência de vacinação de gestantes
Um manifesto recente da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras alerta para os riscos que gestantes e puérperas enfrentam na pandemia de Covid-19.
Além da dificuldade de acesso aos leitos de UTI, o documento aponta para a desorganização dos serviços de assistência pré-natal, com suspensão de consultas, problemas de acesso ao atendimento adequado da Covid-19, falta de testes diagnósticos e de outros insumos terapêuticos.
Estudos mostram que dentre os fatores associados ao óbito materno por Covid estão o período do puerpério, a mulher ter cor preta, viver em área periurbana, não ter acesso ao Programa de Saúde da Família e morar a mais de 100 km do hospital de referência.
Segundo o manifesto, embora o Ministério da Saúde tenha publicado em setembro um manual de recomendações para a assistência às gestantes e puérperas durante a pandemia, não houve modificações importantes da estrutura, dos exames e do fluxo de atendimento, e as mortes continuaram acontecendo.
O documento também chama a atenção para as subnotificações. “Muitas mortes são registradas como SRAG de causa indeterminada porque não chegaram a ser testadas ou porque não havia testes disponíveis. Além disso, muitos óbitos fetais e neonatais também se associam aos óbitos maternos e precisam ser mais bem estudados.”
A rede pede prioridade na vacinação das gestantes e puérperas com e sem comorbidades e mais atenção às medidas protetivas para garantir o isolamento dessas mulheres.
O projeto de lei 3932/2020 que prevê o afastamento do trabalho presencial das gestantes, podendo suas atividades ser exercidas remotamente, foi aprovado pela Câmara dos Deputados mas continua parado no Senado.