Falta de renda para comprar alimentos, dependência de escassas doações e ausência de merenda escolar têm sido a realidade de muitas famílias brasileiras

Do Lunetas

silhueta de uma criança segurando um prato vazio de comida
iStock/arte Lunetas

Se dependesse dos sonhos da professora e musicista Laudy Gomes, 38, ela estaria engajada em compor novas canções. Mas não teve tempo de esperar por aplausos: assumir o posto emergencial na cozinha durante a pandemia foi um chamado do coração. Há meses, ela tem sido responsável por preparar as duas refeições diárias de dezenas de crianças em situação de fome, que vivem na ocupação Nova Guaporé 2, na Zona Oeste de Curitiba (PR).

Assim como ela, as famílias vizinhas fogem dos altos aluguéis da cidade e levantam tábuas para construir suas próprias casas. Com dificuldades de acesso ao auxílio emergencial, muitas delas não conseguem garantir o básico aos filhos, como a comida.

A situação se agravou após o cancelamento das aulas presenciais como uma das medidas de segurança para conter a disseminação da covid-19, desde março do ano passado. Com escolas fechadas, as crianças ficaram sem a merenda prevista pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar, que, para muitas, era a única refeição do dia. Houve poucas cidades e algumas iniciativas independentes de organizações e pessoas, como Laudy, que tentaram manter o programa ou distribuir alimentos e cestas básicas para as famílias.

“Elas estão sem aulas, pois não temos internet na comunidade. Com a falta das merendas, a maioria das crianças depende de doações de alimentos”

Laudy é mãe solo da Eduarda, 4, e sua história se confunde com a de milhares de mães no Brasil que, afetadas diretamente, escolheram ainda ser linha de frente no combate aos efeitos da covid-19. Todos os dias, quando o relógio marca nove horas da manhã, as crianças se reúnem no parquinho improvisado, em frente à sua casa, enquanto acordes do violão anunciam a hora do café.

Fome e pandemia: mulher de pele negra está com um lenço branco na cabeça, vestido florido, em frente a uma porta de uma casa feita de tábuas, em uma favela
Foto: Rafael Bertelli Laudy Gomes, mãe solo e moradora na ocupação Nova Guaporé 2, em Curitiba (PR). Apesar das dificuldades, ela tem sido responsável por preparar as duas refeições diárias de dezenas de crianças

Resultados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil”, publicados esta semana, mostram que 55,2% dos brasileiros têm algum grau de insegurança alimentar (o que inclui, por exemplo, a privação de alimentos ou pessoas que tiveram de pular refeições por falta de comida) e 19,1 milhões passam fome (insegurança alimentar grave).

Segundo a pesquisa, a fome também tem gênero e raça: em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres, os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome está presente em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual é de 7,5%. 

Fome e segurança alimentar na pandemia

Além das questões sanitárias, as dimensões econômicas e sociais da pandemia podem custar caro para a infância, compreendida como etapa crucial do desenvolvimento humano. De acordo com dados publicados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a pandemia pode aumentar a pobreza domiciliar em até 22%, fator significativo para a mortalidade de crianças de até cinco anos

O estudo “Impactos primários e secundários da Covid-19 em crianças e adolescentes”, publicado pelo Unicef, em agosto de 2020, mostra como a queda da renda familiar e o isolamento social têm afetado a segurança alimentar e nutricional no país. Quase metade da população (49%) relatou mudanças nos hábitos alimentares, desde março do ano passado. Entre as famílias que residem com crianças, a porcentagem foi de 58%. 

Se por um lado temos um aumento significativo da obesidade infantil, pois as crianças deixaram de comer comida saudável, por outro, temos crianças que dependiam da merenda passando fome”, aponta o presidente do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Tadeu Fernando Fernandes.

Bolo, bolacha, achocolatados, macarrão instantâneo, refrigerante e enlatados fazem parte do cardápio atual descrito por brasileiros nas entrevistas do Unicef. A pesquisa confirma que o aumento no consumo de produtos industrializados cresceu 31% entre famílias com crianças e adolescentes, contra 18% em famílias sem crianças. 

Sem dinheiro, sem merenda, sem comida

As mortes decorrentes da covid-19 se aproximam da casa dos três milhões. Mas ainda não é possível saber quantas pessoas realmente serão atingidas pelos efeitos da pandemia, sendo a fome uma das consequências mais evidentes.

Nas favelas, quase 70% da população não tem dinheiro para comprar comida e mais de 80% das famílias, assim como a de Laudy e de seus vizinhos, dependem de doações para se alimentar. Os dados são do último levantamento realizado pelo Data Favela, em parceria com o Instituto Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa), entre 9 e 11 de fevereiro de 2021.

A pesquisa “A favela e a fome” entrevistou 2.087 pessoas maiores de 16 anos, em 76 comunidades de todo o país. Os resultados também mostram que 93% das famílias não possuem poupança e 71% delas estão vivendo com menos da metade da renda que tinham antes da pandemia. Com isso, a média de refeições diárias passou a ser menos de duas (1,9).

Talvez os professores da rede pública de ensino tenham sido um dos primeiros profissionais a perceberam a urgência da fome. Enquanto o país debatia a aplicação do ensino remoto nas escolas, o contato direito com os alunos deixou claro que muitas famílias, já no início da pandemia, sequer tinham dinheiro para comprar gás. 

Antes da chegada do vale alimentação ou da própria distribuição de auxílio via Cadastro Único (CadÚnico), em São Paulo, professores já faziam vaquinha para arrecadar cestas básicas, mobilização que ocorreu na Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, Zona Oeste de São Paulo. “Deixávamos encomendado nos supermercados ou na escola e as famílias iam buscar”, afirma a professora do Ensino Fundamental I, Sandra Araujo.

Violação do direito à alimentação chega à ONU

Apesar de ser um direito previsto em lei, em muitas situações, a garantia da alimentação escolar passou a ser cumprida por meio de processos judiciais. Em outubro de 2020, representantes de organizações e instituições brasileiras denunciaram casos relativos à violação desse direito ao relator especial da ONU, Michael Fakhri.

Um dos temas principais foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Tofolli, em desobrigar o Estado do Rio de Janeiro a distribuir merendas escolares durante a pandemia. Municípios que não deram informações ou se negaram a oferecer kit merenda ou planejar ações para assegurar esse atendimento aos alunos também foram mencionados.

Com o cancelamento do auxílio emergencial no final do ano passado pelo Governo Federal, que foi retomado apenas neste mês de abril com um alcance e valor muito menor (R$ 150), especialistas apontam que a situação deve se agravar ainda mais.

Desigualdade social: a pandemia dentro da pandemia

Diante da calamidade instalada pelo novo coronavírus no Brasil, uma pergunta fica latente: como um país que chegou a ser exemplo mundial no combate à fome pode voltar a ser um local de morte infantil por desnutrição? 

Para a nutricionista, doutora em Ciência Sociais pela Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN) e presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Islandia Bezerra, a pandemia atua em cima da fissura das desigualdades. Segunda ela, negar as evidências científicas coloca a sociedade brasileira em vulnerabilidade ainda mais intensa.

“A pandemia está abrindo ainda mais a ferida da desigualdade social”

O Brasil havia saído do Mapa da Fome das Organizações das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, pela primeira vez em 2014, quando o índice de pessoas em situação de fome era de 4,2%. A crise econômica agravada nos últimos dois anos e a pandemia fizeram a fome retomar aos patamares de 2004. Hoje 10,3 milhões de pessoas voltaram a passar fome no Brasil, de acordo com a primeira parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, divulgada em setembro de 2020.

Um artigo publicado em setembro de 2020 pela The Lancet, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo, destacou um novo termo para o debate sobre a crise causada pela covid-19. O texto assinado pelo editor-chefe, Richard Horton, defende que o mundo não está diante de uma pandemia, mas de uma “sindemia”. 

“O termo, cunhado nos anos de 1990, reaparece para explicar, por exemplo, os fenômenos da obesidade, da desnutrição e das mudanças climáticas, intrinsecamente relacionados ao sistema de produção de alimentos”, explica Islandia.

No caso da covid-19, isso quer dizer que o vírus não atua sozinho, mas interage com fatores biológicos e sociais: ele é agravado por outras doenças, mas tem a desigualdade social como motor da proliferação. Portanto, não se trata apenas de uma nova palavra no léxico de debate sobre o coronavírus, mas de uma ideia-chave para o combate aos seus efeitos. 

“As estratégias de enfrentamento à pandemia não estão partindo do Estado brasileiro, mas de iniciativas da sociedade organizada. Apesar de serem um apoio, não têm capacidade de massificação e capilarização”, atenta Islandia.

‘Mães de favela’

Hoje, aproximadamente 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, sendo que mais de 5,2 milhões são mães, segundo estimativa do Instituto Locomotiva. Com metade dos lares brasileiros chefiados por mulheres, como aponta o último senso do IBGE de 2020, elas passam a ser também as mais afetadas pelo cenário atual.

Em resposta a essa realidade, o projeto “Mães de Favela”, criado pela Central Única das Favelas (Cufa), em abril de 2020, arrecadou mais de 180 milhões de reais, se tornando o maior projeto mundial de atuação nessas comunidades. Segundo a Cufa, mais de 1,4 milhão de famílias já foram beneficiadas.