Desrespeito faz com que mulheres passem horas sozinhas antes de dar à luz. Defensoria Pública questiona restrição, tomada pelos riscos da covid-19

Do Plural

A cena tem sido frequente nas maternidades e hospitais públicos de Curitiba. A gestante entra em trabalho de parto e procura uma instituição de saúde, onde o acompanhante é barrado na recepção. A gestante então é obrigada a lidar, por horas, sem qualquer tipo de suporte emocional, com as dores e a carga física e psicológica de um trabalho de parto.

Impedir a gestante de ter um acompanhante durante o nascimento do seu filho vai contra a lei. A legislação assegura que as mulheres tenham a presença de uma pessoa da sua escolha durante todo o período de internamento, que inclui o trabalho de parto, o nascimento e o pós-parto. No Paraná, a violação do direito ao acompanhante também é entendida com um tipo de violência obstétrica, conforme prevê lei específica, aprovada em 2018.

Após receberem uma série de denúncias, tanto de famílias quanto de profissionais de atendimento ao parto, as Defensorias Públicas do Paraná e da União enviaram ofício a nove maternidades e hospitais públicos e particulares de Curitiba. A recomendação é que se cumpra a Lei do Acompanhante.

As instituições mais citadas nas denúncias são públicas: Hospital de Clínicas (HC), Maternidade Mater Dei, Hospital Evangélico Mackenzie e Hospital do Trabalhador (HT).

Acompanhante não é visita

“Todos os organismos internacionais alertam que em situações de crise é comum que haja uma restrição maior dos direitos das mulheres”, afirma Lívia Salomão Brodbeck, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Paraná. “Acompanhante não é a mesma coisa que visita. Existem dados clínicos e científicos que indicam os benefícios do acompanhante para o bebê e para mãe, no parto e no pós parto”, destaca Lívia. Isso diminui o tempo de trabalho de parto e a necessidade de partos instrumentalizados, em que é necessário o uso de fórceps, por exemplo. Também reduz a dor e a exaustão materna e melhora os índices de amamentação.

“Além disso, existem cuidados no pós-parto que exigem o acompanhante. Uma mulher que acabou de sair de uma cesárea não consegue se dedicar ao bebê se não tiver uma pessoa com ela no quarto. E a gente sabe que as equipes de enfermagem não dão conta de cuidar de todos os bebês”, alerta a coordenadora.

Sozinhas

Foto: Luciana Zenti

Foi o que aconteceu com Isabela*. Seu bebê nasceu no dia 30 de março no Hospital Evangélico. Ela fez o internamento às 5h30, mas a cesárea só foi realizada nove horas depois. Durante todo esse período, em que ela já sentia contrações, seu marido permaneceu na recepção do hospital. “Ele só foi chamado no momento em que nosso filho ia nascer. Mas a parte mais difícil foi o período após a cesárea em que fiquei sem ele na enfermaria e passei muito mal. Tive que cuidar da bebê sozinha e estava com muita dor. Chegou uma hora em que eu não conseguia nem mais segurar minha filha e tive uma crise de choro e desespero”, lembra a mãe.

A mesma sensação de desamparo é relatada por Jéssica*, que teve seu filho no dia 23 de março na Maternidade Mater Dei. “Senti muita dor e medo durante o trabalho de parto. Me senti sozinha, abandonada”, diz. “Assim que chegamos, fomos informados de que eu não poderia acompanhar o parto e que seria avisado quando ele nascesse”, conta o marido. “Foi muito difícil. Na hora em que ela mais precisava da minha ajuda, não teve. Ela me pediu várias vezes pelo celular para eu ir até lá, para levá-la embora. Mas eu não pude fazer nada”.

Depois de muita insistência, ele acabou sendo autorizado a ver o filho nascer. “Entrei na sala cinco minutos antes do nascimento. Por pouco eu não perdi”.

Nos outros dois dias do internamento, Jéssica ficou sozinha, sem sequer receber a visita do marido. “Só voltei a segurar meu filho no colo quando fui buscá-lo no hospital”, lamenta o pai.

Superlotação

Histórias como essas também têm sido relatadas no Hospital de Clínicas (HC). Além dos problemas que envolvem a covid-19, o hospital vem sofrendo com a superlotação. Após o fechamento da Maternidade Victor Ferreira do Amaral, em março, o HC passou a receber um número de gestantes muito superior à sua capacidade de atendimento.

À medida que o problema de superlotação foi se agravando e os casos de covid-19 foram aumentando na cidade, a presença dos acompanhantes no parto foi ficando mais restrita. Atualmente, ela só é permitida no momento em que o bebê está nascendo.

“É muito difícil ver uma mulher em trabalho de parto, com dores, pedindo pelo marido ou a mãe, e eu precisar dizer que não é possível”, revela uma enfermeira, que preferiu não se identificar. “Acabo sendo a porta-voz do desrespeito a um direito da mulher”, relata. “Infelizmente há muitas gestantes para serem atendidas e não temos equipe suficiente para estar ao lado delas o tempo todo. A gente orienta para que apertem o botão da campainha se precisarem, mas e se ela passar mal e nem conseguir apertar esse botão? Eu tenho vivido em estado de choque com essa situação”, desabafa.

Sem acompanhante e com as equipes sobrecarregas por causa da superlotação, pedir por ajuda e atendimento nem sempre é uma tarefa fácil. Bruna*, que teve seu parto na Maternidade Mater Dei, foi internada com a promessa de que o marido poderia entrar na hora do parto. Mas não aconteceu. “Fiquei totalmente abandonada. Minha bolsa rompeu, tentei chamar a equipe, mas ninguém veio. Foi quando meu filho começou a nascer e eu gritei que a cabeça estava saindo. Claro que nem deu tempo de chamar meu marido. Só fui vê-lo depois que recebi alta”, ressalta ela. “Passei por momentos terríveis sozinha.”

Na Justiça

No Hospital do Trabalhador (HT), o acompanhante foi proibido em todos os momentos do parto assim que os primeiros casos de coronavírus foram confirmados em Curitiba. A orientação foi revista e atualmente é possível estar presente apenas no nascimento.  A Lei do Acompanhante prevê que a mulher tenha a presença de alguém escolhido por ela durante todo o tempo em que estiver internada. A permissão dos hospitais para a entrada apenas na hora do nascimento não caracteriza o cumprimento da legislação.

Direito nem sempre é garantido. Foto: Luciana Zenti

Nesta semana, após uma gestante ingressar com uma ação judicial contra o hospital, foi concedido, em caráter liminar, o direito ao acompanhante antes, durante e até 24 horas após o parto. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Paraná, com apoio técnico do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem).

A gestante havia sido informada pelo HT de que a presença do marido só seria permitida durante o parto, já no Centro Cirúrgico, e no período de visita – das 13h às 19h. A decisão da juíza Letícia Marina Conte levou em conta que a parturiente, caso dê à luz após às 19h, poderia ficar sem assistência familiar até às 13h do dia seguinte. A Defensoria argumentou que o acompanhante não pode ser considerado visita e que a presença dele, além de garantida por lei, é recomendada pelas Secretarias Municipal e Estadual da Saúde e pelo Ministério da Saúde.

De acordo com o governo federal, o acompanhante deve ser autorizado desde que assintomático e fora dos grupos de risco para a covid-19. Mesmo as mulheres infectadas têm direito a acompanhante, desde que seja alguém próximo a ela. Em qualquer situação, não deve haver revezamentos e os acompanhantes devem ficar restritos ao local de assistência, sem circulação nas demais dependências do hospital.

Falta de EPIs

A Secretaria de Saúde de Curitiba esclarece que o Decreto Municipal 470/2020 proíbe visitas hospitalares como medida de controle de disseminação da covid-19, mas assegura que os direitos de acompanhamentos previstos em lei, como o parto ou a cesárea, sejam respeitados.

A Secretaria diz que não recebeu o ofício da Defensoria Pública do Paraná e, portanto, não irá se manifestar neste momento. Atualmente, as gestantes atendidas pelo Município são encaminhadas ao Hospital Evangélico e à Maternidade Mater Dei.

A Secretaria de Saúde do Paraná (Sesa) também recomendou, em nota orientativa divulgada no dia 28 de abril, que a legislação seja respeitada em todas as regionais de saúde do Estado. Para isso, tanto a gestante quanto o acompanhante devem ser informados sobre os cuidados a serem tomados para preservar a saúde deles e dos profissionais da assistência. O acompanhante não pode apresentar sintomas respiratórios nem estar no grupo de risco para quadros graves de coronavírus. Caso isso ocorra, deve ser substituído por outra pessoa de escolha da mulher.

No entanto, a Assessoria de Comunicação da Sesa afirma que cada unidade poderá decidir sobre essa orientação, de acordo com sua própria realidade.

Em relação ao HT, a direção do hospital respondeu, em nota, que presta atendimento direto a casos de covid-19 e, portanto, entende que o direito coletivo de proteção deve prevalecer sobre o individual. Para que o acompanhante fosse autorizado durante todo o internamento e trabalho de parto, o hospital precisaria disponibilizar equipamentos de proteção individual (EPIs) de difícil aquisição neste momento. Além disso, seriam gerados custos adicionais não previstos pelo hospital.

Até o fechamento desta reportagem, a Assessoria de Imprensa do Hospital de Clínicas (HC) não respondeu à reportagem.

*Os nomes foram trocados a fim de proteger a identidade das fontes.