Pesquisa revela dobro de mortes contabilizadas pelo Ministério da Saúde; epidemia afeta mais gestantes pretas e pardas.

O único documento do ministério com números mais detalhados sobre grávidas na epidemia é um boletim epidemiológico divulgado em 29 de maio. O levantamento é feito a partir de dados do Sivep-Gripe coletados entre 16 de fevereiro e 23 de maio. Segundo o sistema de vigilância em saúde, nesse período, foram notificados 52.335 casos hospitalizados de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) confirmados para covid-19, sendo 521 (1%) em gestantes. Desse total, 36 evoluíram para óbito.

“Na mesma época correspondente aos 36 casos referidos pelo Ministério da Saúde, conseguimos por outras metodologias levantar 62 casos”, afirmou Melania Amorim ao HuffPost Brasil. A metodologia usada pelo Grupo Brasileiro de Estudos de Covid-19 e Gravidez inclui recuperar dados do ministério, buscar informações com as secretarias de Saúde e rastrear casos noticiados pela imprensa ou que chegam por um e-mail da equipe. Só entram na conta casos notificados por alguma autoridade sanitária.

O levantamento independente inclui duas mulheres que morreram em casa sem ter tido tempo de chegar ao serviço de saúde, mas que tiveram covid-19 comprovada, de acordo com Amorim. A diferença nos números se deve a falhas na atuação do governo federal, segundo a pesquisadora. “Está havendo um sub-registro de notificações por parte do ministério que não está conseguindo consolidar essas informações em tempo hábil”, afirmou.

No âmbito da pesquisa, a obstetra sustenta que o ideal para de fato investigar como a epidemia afeta as grávidas seria ter acesso aos prontuários. Com isso, seria possível, por exemplo, mapear de forma mais precisa a frequência de comorbidades, como diabetes e hipertensão arterial, nesse grupo. “A gente deixa de ter acesso aos dados individuais, que seria a metodologia mais adequada para ver os itinerários que essas mulheres percorreram, identificar em que momento da assistência ocorreu falha ou atraso e poder fazer recomendações mais adequadas”, explicou, sobre a atual contagem feita pelo governo.

Segundo a pesquisadora, quando o Brasil somava 62 mortes de grávidas por covid-19, dados publicados por outros países eram muito menores: 2 no México, 7 no Irã, 5 no Reino Unido e um nos Estados Unidos. “Existe um problema muito sério no Brasil que não é descrito na maioria dos países e neste momento a pandemia está revelando uma face perversa que é esse número desproporcionalmente alto de morte materna por covid-19”, afirmou Amorim.

“A pandemia está revelando uma face perversa que é esse número desproporcionalmente alto de morte materna por covid-19.”
Obstetra e ginecologista Melania Amorim, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)

Mortalidade materna no Brasil

Ainda não há explicações precisas para explicar a diferença desses números entre os países por enquanto, segundo pesquisadores. A alta taxa de mortalidade materna no Brasil já era uma preocupação antes da pandemia. O indicador representa o total de óbitos que ocorrem durante ou até 42 dias após o parto e com causa relacionada à gravidez divididos por 100 mil nascidos vivos no local. Em 2018, a taxa foi de 59,1.

A meta estabelecida em um pacto fixado pela ONU (Organização das Nações Unidas) era limitar o indicador a 35 óbitos por 100 mil nascidos vivos até 2015. Cerca de 92% desses mortes são evitáveis e ocorrem principalmente por hipertensão, hemorragia, infecções e abortos provocados.

Em 2018, mulheres de raça/cor preta e parda totalizaram 65% dos óbitos maternos, segundo o Ministério da Saúde. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015, os brasileiros que se declaram pretos ou pardos somavam 53,92%.

Também é possível observar que grávidas pretas e pardas estão mais vulneráveis ao novo coronavírus ao analisar o boletim do ministério, ainda que os dados estejam incompletos.

Em 2018, mortalidade materna foi de 59,1 a cada100 mil nascidos vivos no
Em 2018, mortalidade materna foi de 59,1 a cada100 mil nascidos vivos no Brasil. Callaghan O’Hare / Reute

Grávidas negras estão mais vulneráveis

Das 521 gestantes internadas com covid-19, foram excluídas 36 (6,9%) com idade maior ou igual a 50 anos e uma (0,2%) com faixa etária em branco, totalizando 484 gestantes analisadas. Para as análises sobre evolução de alta ou óbito apenas 288 foram considerados, pois 196 casos ainda apresentavam a variável “evolução” em branco (não preenchida) ou ignorada.

Desses 288 casos, 72 tiveram a informação sobre raça/cor ignorada ou em branco, de modo que só é possível fazer essa análise considerando 216 registros. Nesse grupo, das 141 gestantes negras (pretas ou pardas) hospitalizadas, 121 (85,8%) evoluíram para alta e 20 (14,2%) para óbito. Das 72 gestantes brancas, em 67 casos (93%) o desfecho foi a alta e 5 (7%) de óbito.

“Apesar da incompletude dos dados, observa-se que a proporção de gestantes brancas que evoluíram para cura é maior que aquela observada para mulheres pardas ou pretas”, afirmou ao HuffPost Brasil Fernanda Lopes, doutora em Saúde Pública pela USP (Universidade de São Paulo) e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Estudos realizados no Reino Unido e nos Estados Unidos indicam maior proporção de mortes maternas relacionadas ao novo coronavírus em mulheres negras e outros grupos étnico-raciais minoritários, quando comparadas às mulheres brancas, “em especial em função de diagnóstico tardio e/ou assistência inadequada”, completou a pesquisadora.

No Brasil, as estatísticas oficiais do governo federal não permitem saber quem são essas mulheres que se recuperaram ou morreram. “Não sabemos se elas tinham comorbidades (obesidade, diabetes, hipertensão), não sabemos o trimestre de gestação. Não sabemos se o acesso ao serviço hospitalar foi tempestivo, se o serviço estava preparado para atendê-las adequadamente do ponto de vista de infraestrutura e preparo técnico, não sabemos também se elas foram vítimas de algum tipo de omissão ou negligência”, afirma Lopes.

A pesquisadora também lembra que diversos estudos realizados em um contexto sanitário pré-pandemia apontam dificuldades de acesso e falta de qualidade na atenção dedicada às mulheres negras, grávidas ou não. “No contexto da pandemia, as limitações impostas a todo o sistema podem agravar a operação do racismo nas instituições de saúde, tornando a qualidade da assistência prestada à população negra ainda pior”, completou Lopes.

Entre as pesquisas que apontam para o racismo institucional no contexto da epidemia, uma publicação do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde mostra que a chance de pretos e pardos sem educação formal morrerem devido ao novo coronavírus é 4 vezes maior do que de brancos com nível superior. O levantamento foi feito por pesquisadores da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), da USP (Universidade de São Paulo) e do IDOR.

“No contexto da pandemia, as limitações impostas a todo o sistema podem agravar a operação do racismo nas instituições de saúde, tornando a qualidade da assistência prestada a população negra ainda pior.”
Fernanda Lopes, doutora em Saúde Pública pela USP e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Abrasco

Falta de informações na saúde

Sobre a falta de dados raciais no boletim do ministério, se o paciente chega ao serviço de saúde em condições de responder às perguntas, ele deve declarar sua cor. Senão, o acompanhante o faz. No entanto, na maioria das vezes os profissionais não fazem essa pergunta e atribuem ao usuário a cor que acreditam que a pessoa tenha, de acordo com Lopes. “O pertencimento racial só pode ser definido pela própria pessoa pois a forma como ela se vê no mundo não necessariamente está refletida no modo como o mundo a vê”, afirmou.

As lacunas dificultam a análise do quadro sanitário e, por consequência, a resposta ao problema. O ginecologista e obstetra José Paulo Pereira Junior, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) critica a falta de transparência e organização do Ministério da Saúde na pandemia em geral. “O que a gente tem debatido muito é ter uma base de dados confiável que todos nós pudéssemos usar”, afirmou ao HuffPost.

“A gente está em meados de junho e ficou sem dados no meio do caminho. Essa confusão toda que a gente tem visto em relação a horário de divulgação [de boletins epidemiológicos], tipo de divulgação, mudança de boletim, confundem mais do que facilitam, e a gente não pode fazer programação de saúde pública se não tiver claramente com esses dados abertos e passíveis para serem discutidos por todos”, completou o médico.

O obstetra faz parte da equipe do IFF/Fiocruz que está fazendo um estudo para acompanhar gestantes e puérperas em meio à pandemia. A estimativa é que cerca de 300 pacientes participem da pesquisa que deve ter resultados em 3 meses. Todas as grávidas internadas no hospital fazem teste RT-PCR para saber se estão contaminadas, assim como os bebês, que seguem em acompanhamento para que seja observado se há algum problema a médio ou longo prazo.

A epidemia de zika, iniciada em 2015 no Brasil, por exemplo, levou à síndrome congênita do zika nos bebês de mães infectadas. Até o momento, não há evidências científicas de transmissão vertical do vírus. Por isso, a amamentação é recomendada, ainda que com cuidados, como lavar as mãos e o bico do seio, colocar máscara para amamentar e colocar pano entre bebê e paciente para evitar contaminação acidental no pós-parto.

As dúvidas sobre o efeito do novo coronavírus nas grávidas são parte das incertezas sobre o patógeno em geral. “A gente tem uma doença que tem 5 meses e, de uma maneira bastante honesta, a gente sabe muito pouco sobre ela na população geral”, afirma Pereira Junior.

“A gente tem uma doença que tem 5 meses e de uma maneira bastante honesta, a gente sabe muito pouco sobre ela na população geral”, afirma Pereira Junior, da Fiocruz. Luis Alvarenga via Getty Images

Gravidez como fator de risco para covid-19?

Desde abril, o Ministério da Saúde passou a considerar gestantes como parte do grupo de risco para covid-19. O mesmo passou a se aplicar às puérperas, nome dado às mulheres que estão passando pelo chamado “puerpério”, período que contempla cerca de 45 dias após o parto.

A orientação da pasta é que a assistência à saúde deve ser organizada de modo a garantir os atendimentos a mulheres e recém-nascidos enquanto durar a crise sanitária, considerando o manejo adequado nos casos suspeitos de covid-19 nas gestantes e puérperas.

A realidade, contudo, nem sempre é essa. Em algumas cidades, optou-se por diminuir o número de consultas de pré-natal no primeiro e segundo trimestre.

A gente tem uma doença que tem 5 meses e de uma maneira bastante honesta, a gente sabe muito pouco sobre ela na população geral.
Ginecologista e obstetra José Paulo Pereira Junior, do IFF/Fiocruz

O que as pesquisas identificaram até agora é que estar grávida não é um fator de risco por si só, porém a gravidez pode estar associada em alguns casos a comorbidades que são fatores de risco. É o caso de diabetes, hipertensão e obesidade, por exemplo.

Por esse motivo, o terceiro trimestre de gestação costuma ser mais crítico para a covid-19. Das 288 gestantes internadas com a doença, 168 (66,7%) das que evoluíram para alta estavam no terceiro trimestre. E 22 (61,1%) dos óbitos também estavam nessa etapa da gravidez. Vale destacar que o registro de 13 pacientes com alta não tinha essa informação, assim como o de duas mortes, segundo o boletim do Ministério da Saúde. Dos 36 óbitos contabilizados no boletim, 29 tinham alguma comorbidade.

“As pacientes no terceiro trimestre têm algumas características. O próprio volume abdominal, por exemplo, dificulta que a pessoa respire normalmente. As pernas já incham. É também nessa época que a gente vê a piora de algumas doenças. Se você olhar as comorbidades [das gestantes que morreram por covid-19], cardiopatia, diabetes, hipertensão e obesidade, são fatores de risco para grávidas, mas também para o novo coronavírus”, explica Pereira Junior.

O obstetra também lembra que a gravidez pode ser um desafio para a doença porque alguns medicamentos não podem ser usados em função do bebê.

Na semana passada, o Ministério da Saúde ampliou a recomendação do uso da cloroquina e hidroxicloroquina para incluir grávidas com sintomas de covid-19. Não há comprovação científica do uso da droga para tratar o novo coronavírus.

Antes da recomendação, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) havia afirmado que não existem estudos demonstrando efetividade ou segurança no uso da hidroxicloroquina ou cloroquina para o gestantes e que o tratamento deve “considerar a gravidade do quadro clínico materno e a terapêutica deve ficar a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com a gestante”. A organização não se pronunciou após o anúncio do governo federal.

Na avaliação de Melania Amorim, há condições em que a cloroquina pode ser prescrita para grávidas, como no caso de malária, porém não se aplica à covid-19 por não haver comprovação científica para esse uso.