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Mães relatam que, em casa, filhos sofrem com gagueira, depressão, intoxicações e até auto-agressões

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A arquiteta Juliana Duarte Fernandes Santana e seu filho, de 5 anos: criança desenvolveu crises de ansiedade, falta de ar e transtorno alimentar durante o período sem aulas presenciais. Foto: Cristiane Mattos

Aos 5 anos, o filho de uma arquiteta tem falta de ar e fica dentro de casa andando em círculos e com mania de arrumação. Uma pergunta feita pelo menino a deixa desolada: mamãe, porque você pode sair de casa e eu não?

Voltar a urinar na cama acompanhada por uma repentina gagueira foram os efeitos colaterais que a falta de aulas presenciais e o isolamento social provocou em um menino de 4 anos, filho de uma advogada. A criança agora faz acompanhamento no psicólogo e fonoaudiólogo.

Os relatos são de mães que alegam vivenciar em casa uma angústia ao ver os filhos e filhas passaram por sofrimentos que, segundo as famílias, são resultado dessa sequência de meses em que as escolas estão de portas fechadas. Os impactos não escolhem classe social, mas é perceptível que as crianças de famílias com menor poder aquisitivo sofram ainda mais. Os relatos envolvem distúrbios alimentares, do sono, emocionais, intoxicações intencionais e até auto-agressões.

Juliana Sartorelo é médica e mãe de 3 crianças. Ela diz presenciar os reflexos que a falta da escola causa nos alunos de duas formas: no atendimento médico e em casa. Seu filho do meio, de 4 anos, desenvolveu distúrbio do sono e crise de ansiedade. A filha mais velha, de 5, passou o dia inteiro na cama chorando quando uma liminar ordenou que as escolas da capital não retomassem as aulas. E os casos que ela tem atendido no Centro de Toxicologia do Hospital João XXIII são ainda mais graves.

“Percebemos desde o início (da pandemia) que as crianças e adolescentes vêm chegando ao ambulatório com idade cada vez mais jovem. Elas acabam sendo vítimas de privação de alimento e agressão física. Temos visto um crescente número de autoagressão nessas crianças, algumas delas vindas de famílias disfuncionais, com pais dependentes químicos, e outras que ficam a mercê das telas de celulares, pois os pais trabalham fora ou ficam em home office”, contextualiza.

Acidentes

A médica também informa que a falta de aula presencial nas escolas tem criado um outro fenômeno: crianças maiores cuidando de irmãos menores, o que eventualmente acaba resultando em acidentes domésticos. “Teve uma menina de 11 anos que cuidava de uma de 3 e outra de 5. Elas fizeram ingestão de analgésicos e medicamentos de pressão dos pais quando eles saíram para trabalhar. Há casos de crianças que bebem produtos de limpeza, sofrem quedas e outros acidentes por causa da ausência dos pais. Então a escola acaba sendo um refúgio para a criança, seja alimentar ou no contexto de famílias disfuncionais. Sem isso a criança fica muito vulnerável”, argumenta Juliana.

A indignação, segundo as mães, reside no fato de a prefeitura ter proibido a retomada das aulas presenciais sem ter apresentado nenhuma outra alternativa. “O meu filho é invisível para o poder público”, reclama a advogada Luciana Dadalto, mãe do garoto que desenvolveu gagueira. Para ela, falta uma compreensão sobre a defasagem que a falta de aulas presenciais vai causar nas crianças. “Estamos maltratando o futuro. Minha revolta é em relação a isso. O direito à educação é algo constitucional”, alega.

Outra preocupação é que a sociedade entenda que a luta pela retomada das aulas presenciais pode ser feita com cautela e regras sanitárias severas. “Claro que na escola há risco de contaminação, mas há também no boteco, no parque, na praça”, compara a Juliana Duarte, cujo filho começou a ter falta de ar assim que as aulas foram paralisadas.

As mães se intrigam sobre o porquê as aulas em Belo Horizonte continuarem proibidas, sendo que países da Europa, em plena segunda onda da Covid-19, priorizaram o funcionamento das escolas, segundo elas. “A escola não pode ser esse lugar da Covid. Se abrem clubes e cinemas e meu filho pode ir a esses lugares, estamos pedindo é uma explicação”, diz a arquiteta.

Elas também sentem que os filhos estão com comportamentos de sociabilidade alterados. “São crianças que estão na fase de formação de caráter, o que é feito através do contato físico. A criança fora da escola não se esforça em fazer parte de grupo nenhum. Dentro da escola ela aprende a aceitar o não e os limites do outro”, responde Juliana.

“Naturalizamos crianças sozinhas em casa”, afirma escola

Não são apenas mães e pais que têm sentido as dificuldades que a falta de aulas presenciais manifestam nas crianças. Nas escolas, o reflexo também é percebido e alimenta preocupações entre equipes pedagógicas. Para Letícia Fonseca, uma das proprietárias da escola particular Clic, no bairro São Pedro, região Centro-Sul da capital, a educação está sendo colocada de escanteio e o prejuízo não está sendo devidamente calculado.

Letícia, dona de escola, diz educação não pode ser deixada para lá

 

“Naturalizamos que as crianças podem ficar sozinhas em casa vendo televisão. A janela de aprendizagem vai passar, e como vamos recuperar isso depois?, questiona. “A escola é o maior centro de convivência para as crianças, ajuda a construir conceitos éticos, morais, de autoconhecimento e diversidade. Atua na formação da personalidade e identidade. Não podemos deixar isso para amanhã”, desabafa.

Escolas sem data para reabrir

O Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep-MG) informou que recebe diversos relatos de crises emocionais dos estudantes, estresse, depressão, dentre outras questões que envolvem a saúde mental. Para o sindicato, as estratégias dos órgãos públicos de combate à pandemia no ramo educacional são generalistas.

“O retorno às atividades poderia ser opcional e controlado”, diz a nota enviada pela entidade. O Sinep afirma ainda que “o poder público atrasa o retorno presencial às atividades escolares por interesses políticos e por não oferecer condições às escolas municipais e estaduais de se adaptarem a este momento”.

Consultada, a prefeitura de Belo Horizonte informou que ainda não é possível reabrir as escolas para aulas presenciais. Segundo o Executivo, a previsão é que a abertura aconteça quando a incidência média por 100.000 habitantes atinja valores compatíveis com baixo risco (menor do que 20 novos casos por dia) para a saúde pública.

Sobre demandas de saúde mental apresentadas por alunos, a prefeitura relatou que os centros de saúde contam equipes de saúde mental formadas por psicólogos e psiquiatras. Eles atuam no acompanhamento ambulatorial também de crianças e adolescentes. A Unidade de Acolhimento Infantil e os Centros de Referência em Saúde Mental Infantojuvenil completam a rede de atendimento. O número de atendimentos foi de 104.061 (2019) e 53.976 (até 30 de outubro de 2020).

Questionada sobre quais propostas alternativas foram pensadas para a educação durante a pandemia, a administração municipal informou que implementou o regime especial de atividades escolares, estratégia que alcança a educação infantil, ensino fundamental e alunos do Educação de Jovens e Adultos (EJA). As atividades são asseguradas por meios físicos impressos ou eletrônicos.