Brasil, 16 de abril de 2020
A situação atual de emergência de saúde pública evidencia as fragilidades e contradições dos sistemas de atenção à saúde de mulheres e bebês. Nesse contexto, nós, pessoas e instituições abaixo assinadas, vimos manifestar nossa preocupação em relação às medidas que colocam em risco a saúde, o bem-estar e os direitos de mulheres e bebês. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade de agirmos coletivamente no sentido de produzir ações que favoreçam a assistência ao parto e nascimento segura, empática, respeitosa e baseada em evidências.
Nesta crise, os direitos das mulheres, arduamente conquistados ao longo de anos de avanços e que se manifestaram em políticas públicas, estão duramente ameaçados. O desrespeito ao direito a acompanhante no parto, ao acompanhamento com uma doula e ao direito de não ser induzida a uma cesárea desnecessária são os exemplos mais marcantes desse retrocesso (D24AM, 2020; RIBEIRO; KNOPLOCH, 2020). Porém, mesmo no contexto da pandemia de Covid-19, os valores éticos e políticos a orientar a atenção ao parto e ao nascimento no Brasil devem permanecer calcados no entendimento da saúde como um direito (artigo 6º da Constituição Federal de 1988) e no marco geral dos direitos humanos. Para que isso se consolide, os achados diários da pesquisa científica devem ser considerados e adaptados para a regulação e organização da rede de atenção em saúde materna e infantil, de forma a garantir acesso, qualidade, segurança e continuidade do cuidado para mulheres e recém-nascidos acometidos ou não pela Covid-19, protegendo-os da contaminação pelo coronavírus.
Há um sólido corpo de evidências sobre o que são boas práticas na assistência a mulheres no ciclo reprodutivo. Esse conhecimento se ancora no direito da mulher ser sujeito desse cuidado. Uma experiência positiva de parto e bons desfechos demandam o cumprimento dos direitos básicos das mulheres a uma assistência respeitosa e baseada em evidências. Toda mulher tem o direito de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental e é papel do Estado assegurar a prevenção e tratamento a doenças epidêmicas e criar condições que assegurem a toda a assistência e serviços em caso de enfermidade.
Os direitos reprodutivos também são reconhecidos como direitos humanos e nesse marco as mulheres têm direito de exercer a reprodução livre de discriminação, imposição e violência. Na atenção ao parto e nascimento, podemos traduzir isso tudo como práticas baseadas em evidências e humanizadas, que incluem apoio contínuo – cujos benefícios somados superam os de outras intervenções individualmente consideradas – o atendimento a gestações de risco habitual segundo um modelo que promove a fisiologia do parto e nascimento, liderado por parteiras, entre tantos outros aspectos, inclusive a proteção contra o coronavírus. Mesmo em situações emergentes como a do coronavírus não é aceitável violar os direitos fundamentais das mulheres. Os serviços e profissionais devem estar suficientemente organizados para que possam contribuir com a função do Estado de proteger e promover os direitos fundamentais das mulheres.
Desde a década de 1980, o Ministério da Saúde tem proposto políticas e programas visando à qualificação da assistência à saúde, em especial de bebês e crianças e das dimensões reprodutivas das mulheres. O Ministério da Saúde já publicou orientações para a prática da gestão e da assistência materna e infantil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020), contudo, reconhecemos as dificuldades existentes no Brasil para organizar um modelo de atenção centrado na necessidade da mulher e do bebê; as barreiras para implementar protocolos baseados em evidências científicas e para promover educação continuada dos profissionais atualizada e baseada em evidências. Assim, apresentamos as recomendações a seguir para proteger e promover os direitos humanos de mulheres, bebês.
O direito a acompanhante deve ser assegurado para todas as mulheres em todo o período de internação, independentemente de estarem ou não com sintomas ou com resultado positivo para Covid-19. Essa reivindicação tem amparo na Lei 11.108/2005 (BRASIL, 2005) e nas recomendações do Ministério da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017) e da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2018, 2016). Há consenso social e evidências consolidadas sobre os benefícios do acompanhante no parto para a saúde física e emocional da mulher e do bebê (BOHREN et al., 2017; SYCKLE; CARON, 2020), assim, os Princípios de Siracusa (UN, 1985) devem ser aplicados ao caso¹. Obrigar as mulheres a darem à luz sem qualquer tipo de suporte afetivo pode configurar uma situação de tratamento degradante e humilhante.
A recomendação do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira de suspensão imediata das cirurgias eletivas (nas quais se incluem cesáreas) sem indicação clínica (AMB, 2020; CFM, 2020) deve ser implementada. Essas cesarianas apresentam os riscos inerentes de uma cirurgia de grande porte, mas não têm indicação clínica para a saúde da mulher e da criança e utilizam recursos de equipamento de proteção individual (EPI), escassos neste momento no Brasil, assim como materiais cirúrgicos, e aumentam o tempo de internação e a necessidade de internação em UTI neonatal. Ademais, sabe-se que é necessário diminuir a exposição da parturiente a potenciais fontes de infecção e profissionais de saúde assintomáticos podem constituir uma dessas fontes. Em um centro cirúrgico, cerca de dez deles circulam, aumentando as chances de contágio para a parturiente e acompanhante. O maior tempo de internação decorrente da cesariana também incrementa o risco de contágio para mulheres e crianças. Cabe ressaltar que a Saúde Suplementar ostenta proporções de nascimentos pela via cirúrgica superiores a 80%.
Deve ser assegurado o uso correto e racional de EPI’s por todas as pessoas presentes no cenário do parto, restringindo-se ao mínimo a equipe de assistência – salvaguardando-se o direito ao acompanhante previsto em lei – para evitar que corram riscos e que contribuam para disseminação do vírus.
A acomodação em pré-parto coletivo também deve ser evitada. No contexto da pandemia, torna-se ainda mais importante garantir ambiente privativo para o trabalho de parto e os quartos PPP (pré-parto, parto e puerpério), conforme regulamentado pela RDC-36/2008 da Anvisa (ANVISA, 2008).
Gestações são na maioria das vezes processos fisiológicos e saudáveis e muitas gestantes estão em quarentena. Hospitais gerais têm sido demandados por pessoas doentes, muitas delas portadoras de coronavírus, e não são ambientes adequados para pessoas hígidas em trabalho de parto e seus acompanhantes. Assim, a assistência ao parto deve ser reorganizada priorizando-se maternidades de baixo risco e Centros de Parto Normal. O parto domiciliar seguro, planejado e com retaguarda hospitalar para aquelas mulheres que fizeram esta opção e têm uma equipe assegurada devem ser encorajadas a seguir seus planos, conforme as evidências científicas (AOM, 2020; NPEU, 2017) e as Diretrizes Nacionais de Atenção ao Parto (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).
No caso de a única possibilidade de atendimento em um determinado território ser um hospital geral, setores específicos devem ser definidos para a assistência ao parto, ou seja, a maternidade do hospital, com porta de entrada específica, para proteger as mulheres de possível contágio, incluindo o uso de EPI mínimo pelas parturientes durante a internação (máscaras, por exemplo).
Nos partos de risco habitual, deve-se assegurar o cuidado ao trabalho de parto e parto assistido pelas enfermeiras obstetras e obstetrizes, profissionais especializadas em atenção ao parto sem complicações, com resultados perinatais e maternos positivos; e que a retaguarda médica fique reservada para assistência às complicações obstétricas e às gestantes de risco. Há evidências de que este modelo tem melhores resultados e por isso é recomendado pelos organismos internacionais (RENFREW et al., 2014).
A alta de mulheres e bebês deve ocorrer em tempo oportuno, de modo a evitar a permanência desnecessária de puérperas e bebês saudáveis em hospitais ou maternidades, para reduzir as oportunidades de exposição ao coronavírus. A continuidade do cuidado após a alta hospitalar deve ser assegurada pela atenção primária de saúde e profissionais/serviços responsáveis.
O acesso a métodos de planejamento reprodutivo para todas as mulheres deve ser assegurado, evitando-se burocracias e atrasos.
As gestantes devem ser orientadas a evitar UPAS e prontos-socorros gerais, onde espera-se maior exposição ao Covid-19.
As evidências científicas mostram resultados mais favoráveis quando a mulher é acompanhada por doulas. As doulas podem ofertar suporte à mulher na gravidez e no parto, e apoiar a elaboração do plano de parto, orientar a vinculação da gestante ao serviço de atenção ao parto, assim como apoiar as mulheres em trabalho de parto.
Todos as pessoas na cena do parto devem fazer uso adequado de EPI nesse contexto e discutir com a mulher quais estratégias poderão ser usadas durante o trabalho de parto para apoio contínuo, incluindo alívio não farmacológico da dor, de forma a minimizar o contato físico.
Atenção especial deve ser dada para a promover a equidade e assegurar a proteção dos direitos de mulheres vulnerabilizadas, como um dos princípios do sistema de saúde brasileiro.
As medidas aqui propostas visam também proteger os profissionais de saúde da contaminação pelo coronavírus. Esses trabalhadores compõem uma força de trabalho imprescindível para o controle da epidemia e assistência às pessoas doentes. Conforme demonstra a experiência internacional e nacional, os profissionais de saúde estão sendo afastados por contágio e adoecimento com Covid-19. Assim, é urgente o estabelecimento de mecanismos de apoio a profissionais de saúde, para que possam cuidar de sua saúde física e emocional de maneira adequada.
Reforçamos que neste momento de crise em que se faz necessária a redução da circulação de pessoas nos serviços de saúde, é direito da gestante estar acompanhada por uma pessoa de sua livre escolha durante todo o período de internação. Reduzir o número de pessoas no parto nesse momento é proteger todas as pessoas envolvidas, mulheres, bebês, profissionais e doulas.
O acompanhante das mulheres com e sem sintomas deve ser assintomático, não pertencer a grupos de risco e não deve circular fora da sala/quarto. Se a mulher for sintomática o acompanhante deve ficar isolado junto com a mulher e não deve haver trocas de acompanhantes.
Não deve haver visitas a gestantes, puérperas e seus bebês, objetivando diminuir a circulação dentro dos hospitais e maternidades.
As recomendações e normas técnicas, editadas conforme o surgimento de evidências científicas e a evolução da pandemia, devem vir acompanhadas de mecanismos que assegurem a ampla discussão e possível implementação nos serviços de saúde
Por fim, reforçamos que o caráter parcial ou transitório do conhecimento científico no contexto da pandemia de Covid-19 não justifica a supressão dos direitos fundamentais de mulheres e bebês. Cientes de que as recomendações elencadas podem vir a ser reconsideradas devido a novos conhecimentos ou conforme a evolução da pandemia, subscrevemo-nos.
Grupo de Estudos em Gênero, Evidências, Maternidade e Saúde – Gemas/FSP/USP (facebook.com/gemasusp – grupogemasusp@gmail.com)
Parto do Princípio – Mulheres em rede pela maternidade ativa (facebook.com/redepartodoprincipio – @partodoprincipio)
Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – ReHuNa (@rehunabrasil – rehuna.org.br)
Sentidos do Nascer – UFMG (sentidosdonascer@gmail.com – facebook.com/sentidosdonascer)
Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras (facebook.com/redefeministadege)
Federação Nacional de Doulas do Brasil (@fenadoulasbr – fenadoulasbr@gmail.com)
Ishtar – Espaço para Gestantes (facebook.com/espacoishtar)
Movimento #NasceLeonina (@nasceleonina)
Movimento Bem Nascer BH (@movimentobemnascer)
Movimento BH pelo Parto Normal (facebook.com/bhpartonormal)
Nascer Direito – Coletivo Nacional de Advogadas no enfrentamento à Violência Obstétrica (@nascerdireito)
¹ Os Princípios de Siracusa sobre a limitação ou revogação dos direitos previstos no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelecem que para a restrição de direitos deve haver: base legal, necessidade extrema, base em evidências científicas, duração limitada, respeito à dignidade humana, possibilidade de revisão, proporcionalidade ao alcance de seu objetivo e ainda não ser arbitrária nem discriminatória
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMB. AMB recomenda suspensão do atendimento ambulatorial eletivo em todo o país. São Paulo: AMB, 19 mar. 2020. Disponível em: < https://amb.org.br/noticias/amb-recomenda-suspensao-do-atendimento-ambulatorial-eletivo-em-todo-o-pais/>. Acesso em: abr. 2020.
ANVISA. Resolução RDC nº 36, de 3 de junho de 2008. Dispõe sobre Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal. Disponível em: <https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/rdc-n-36-de-03-de-junho-de-2008>. Acesso em: abr. 2020.
AOM. Home birth during the Covid-19 Pandemic. A viable option for all clients at low risk of complications. Ontario: AOM, 2020. Disponível em: < https://www.ontariomidwives.ca/sites/default/files/QRM%20resources/IPAC/AOM%20-%20Choice%20of%20Birthplace%20during%20the%20COVID-19%20Pandemic%20-%20April%202020.pdf>. Acesso em: abr. 2020.
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BRASIL. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11108.htm>. Acesso em: abr. 2020.
CFM. Posição do Conselho Federal de Medicina sobre a pandemia de COVID‐19: contexto, análise de medidas e recomendações. Brasília, DF: CFM, 17 mar. 2020. Disponível em: < http://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/covid-19_cfm.pdf>. Acesso em: abr. 2020.
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